Design Brazuca: a potência da criação nacional
Com peça protagonistas em uma narrativa plural, a história do design brasileiro é escrita por mãos que contornam obras carregadas por identidade autênticas e alinhadas com inovação e sustentabilidade.

Isto aqui, ô ô, é um pouquinho de Brasil, iá iá”, entoa Caetano com a ginga que só o povo que canta e é feliz tem. Em uma terra com belezas naturais exuberantes, o carisma do samba e a alegria tão presente em suas narrativas, o que não falta é inspiração para criar — seja uma canção que faz vibrar cada parte do corpo ou um móvel com matérias-primas nativas e perfeita sintonia entre forma e função. Falar sobre a identidade brasileira no design é trazer para a roda de conversa a palavra pluralidade. Em um território com dimensões continentais, seria raso e limitante definir a vertente criativa a partir de um conceito baseado em rótulos. Na miscelânea de culturas, cores, texturas, sabores e ritmos que compõem o imaginário nacional, surgem as mais diversas composições com traços, formas e propostas diferentes entre si, mas com algo em comum: a autenticidade e riqueza estética que fazem parte do DNA do Brasil.

O que é possível afirmar categoricamente é que o país ostenta uma posição de destaque nesse universo: para além da tropicalidade conhecida lá fora, designers brasileiros transcendem os estereótipos com criações de vanguarda, muitas delas premiadas nos principais concursos mundiais. Por aqui, o berço do design remonta a pouco antes da metade do século passado, com o movimento modernista — considerado por especialistas a escola fundadora do desenho industrial. A chegada da arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi na década de 1940 já mostrava um solo fértil, que logo seria cultivado por futuros ícones do design brasileiro, como o baiano Zanine Caldas, conhecido como o “mestre da madeira”, e o português radicado em São Paulo Joaquim Tenreiro. De lá para cá, o cenário prosperou e, hoje, artistas locais contornam não só as suas obras presentes em projetos e galerias ao redor do globo, mas a história do design nacional e internacional.

Para o curitibano Ronald Sasson, “somos um país que tenta sempre honrar o nosso modernismo e, ao mesmo tempo, propor uma nova narrativa à altura dele, o que é um desafio”. Em Santa Catarina, nomes como Jader Almeida e Bruno Faucz fortalecem o setor no estado, que é referência em movelaria, mas nem sempre foi assim. Antes de ter a sua importância reconhecida, a profissão misturava-se com outras áreas. A partir do momento em que o mercado compreende a criatividade como potência econômica, há uma revolução na indústria.

Curitiba, Paris, Israel. Assim como as cidades escolhidas como endereço fixo pelo designer Ronald Sasson no início de sua carreira, a sua jornada é marcada pela riqueza cultural. O brasileiro, que é referência mundial na área, adquiriu sua bagagem trabalhando em chão de fábrica, experimentando os limites dos materiais e como eles funcionam para além da vivência de observação de maquinário. “O designer precisa de formação, mesmo que ela seja da experiência. Antes de mais nada, precisa de bom gosto e inovação, e isso não pode ser ensinado”, defende.

Em contato com o universo do design desde a adolescência, se aprofundou, desde cedo, nas artes conceituais e neo-experimentais. No retorno para o Brasil, passou a atuar como artista plástico. Já nessa época, Sasson mergulhou no mundo do design como autodidata, buscando características que unissem sua base artística autoral com as possibilidades industriais e de replicação.

Para além dos clichês sobre criação, Sasson não segue cartilhas de móveis temporais ou datados, a exemplo da Poltrona Yori, premiada no italiano A’Design Award. Sentar e esperar a inspiração chegar de maneira sublime também não faz o seu perfil. “Não tenho rompantes criativos e não acredito nisso em termos práticos”, acredita. “Meu processo é o dia a dia. Tenho metas e briefings a cumprir e acho que a inspiração vem da experiência e da observação aliados à natureza de cada profissional”.
Atento à agenda de sustentabilidade, que não considera apenas uma escolha, mas também uma “imposição necessária”, o designer não cria seus desenhos pensando estritamente nessa questão: “O desenho acaba caricato ou até mesmo oportunista. O que precisamos fazer é seguir o estilo próprio de cada peça e adaptá-la à nova situação ecológica mundial e à oferta que teremos de material”.

O designer Rafael Fernando Dias e a arquiteta Ana Carina Zimmermann, da Casa de Projetos, um dos principais escritórios na região sul, compartilham com Ronald Sasson o olhar apurado para as questões ambientais. Assim como o curitibano, a preocupação da dupla com a escolha de matérias-primas e acabamentos passa por um item importante: o ciclo de vida. “Cada vez mais a sustentabilidade se torna um aspecto importante na hora de projetar, ao criar ou escolher peças. Por isso, sempre procuramos pensar na durabilidade dos materiais e no cuidado na produção, na manufatura e na personalização, além de observar a mão de obra utilizada pela indústria”, afirmam os sócios.

Em relação a estilo, as peças concebidas por Sasson são obras desejadas por profissionais pela pureza e pela autenticidade que carregam em si. Nos projetos da arquiteta Daniele Mais, o design assinado tem protagonismo em propostas que passeiam do clássico ao contemporâneo, como a poltrona Copa, criada em homenagem a um icônico destino carioca: o Hotel Copacabana Palace. O desenho do móvel remete à década de 1960 — período de ouro do hotel —, época em que o movimento modernista se fortalecia com a elegância que lhe é característica. O espaldar em couro sola e os braços orgânicos em nogueira maciça agregam arrojo à peça, enquanto a estrutura em metal com pintura acetinada cria um contraponto com a leveza contemporânea.

Visitar a história para conceber formas, linhas, cores e texturas é apenas uma das características que fazem de Ale Alvarenga protagonista quando o design brasileiro entra em pauta. Ao criar seus produtos, questões temporais, comportamento humano e a busca pela compreensão do momento entram em cena para transformar o abstrato em palpável. Oriundo de Minas Gerais, já desenhou para países como China, Índia, Holanda, Canadá e diversos outros, mas foi em Santa Catarina que fincou raízes.

Apaixonado pelo belo como um bom libriano, até na hora de compor possui equilíbrio. Apesar de considerar o seu processo criativo um pouco “catastrófico”, a próxima etapa se consolida de maneira rápida. Depois dos insights e de aflorar a criatividade, possui facilidade em transformar o imaterial nas peças de seu acervo. O designer possui dislexia com transtorno transmodal e atribui a ela a praticidade de transpor palavras em algo concreto.

Para criar, seus princípios são “corpo, alma e propósito”. Para ele, uma composição onde não há propósito não preenche verdadeiramente o espaço, não carrega sentidos… É apenas um corpo em meio a tantos outros. A autenticidade, o sentimento e o simbolismo vêm dele e, sem ele, o consumo se faz sem reflexão ou objetivo algum.

Na sua curadoria, a sustentabilidade perpassa todos os fatores de produção. Além de utilizar apenas os recursos necessários para cada item — evitando desperdício — os trabalhadores que concretizam suas peças são vistos com olhar atento e preocupado. Até a compra do cliente, mãos carregadas de histórias, sonhos e objetivos passam por ela e esse reconhecimento é imprescindível na atuação do designer, que já trabalhou na criação de roupas, calçados e materiais hospitalares, além de movelaria.

Entre tantos nichos em que fez sucesso, Alvarenga foi premiado duas vezes consecutivas na HRD Design Council Awards por joias que assinou. Já no setor mobiliário — que tem lugar cativo em sua criação —, o profissional expôs em feiras em Paris e São Paulo, com produtos que são referência nacional e internacional.
Entre as diversas coleções que lançou nos seus 20 de experiência, a linha Haikai emite uma estética leve, com peças ergonômicas e marcantes. A poltrona Midori é um dos itens que se destacam, possuindo um design despojado e traços que emanam conforto. Democrática, a criação exibe beleza sensorial e materiais de alto rigor, como madeira maciça e assento estofado.
Quando o assunto é o mercado catarinense, Ale Alvarenga enaltece a pluralidade de projetos de alto padrão. Para ele, o estado se destaca pelas produções que fogem do enfoque regional, englobando diversidade e requinte, além de ser responsável por levar o design brasileiro para novos patamares. Compondo parte desses projetos ilustres com suas coleções, o designer não possui um estilo referência, que predomina entre seus desenhos. Suas inspirações são resgates vindos de todo lugar e expressos de múltiplas formas.

Multidisciplinar, Rejane Carvalho Leite migrou da arquitetura comercial para o design de forma gradativa — assinava peças que implementava em seus projetos, como um complemento aos ambientes que concebia. E que complemento! Em 2001, oito anos após a sua formação em arquitetura, passou a desenhar para a indústria e não parou mais, exercendo seu dom de explorar a criatividade em peças que estabelecem a conexão com o mundo.

Carregando uma bagagem cultural de peso, Rejane vivenciou a cultura italiana de modo efetivo e intenso, trazendo características do país que respira arquitetura para as suas criações. Além de ser figurinha carimbada em exposições dentro e fora do Brasil — como a Feira Internacional de Móveis Contemporâneos, em Nova Iorque, e a DW! Semana de Arte em São Paulo — a arquiteta já trabalhou em parceria com escritório em Florença e aprimorou suas técnicas em Milão.
Mesmo com toda a sua astúcia e anos de experiência, gosta de desenhar à mão os primeiros traços de suas obras, além dos toques artesanais sempre presentes em cada item. Apesar de estar sempre em alta com produtos atemporais, enfatiza: “não sigo tendências”. Para Rejane, sua intuição é o seu norte ao conceber um novo produto e busca imprimir em cada um uma história carregada de raízes e significados.

Como produtora de bens materiais, a profissional lembra do papel que tem em apoio à sustentabilidade, buscando utilizar recursos de forma consciente com o objetivo de minimizar os impactos ambientais na sua atuação. A arquiteta Rita Vieira compreende que essa é uma preocupação cada vez mais presente no universo da arquitetura e do design. Para ela, agir de forma sustentável também é buscar por matérias-primas regionais, promovendo o desenvolvimento do mercado local.

Rita, que tem Rejane na lista de seus designers favoritos, vê as peças assinadas como imprescindíveis na concepção de ambientes originais. Intensificando a identidade de cada morador dentro de seu lar, os produtos de Rejane possuem sensibilidade e a mágica de teletransporte para épocas, cidades e países diferentes, transcendendo a relação humano-objeto.
Possuindo uma estética apurada, a poltrona Jóquei foi inspirada nas selas de montaria. A peça possui linhas envolventes e couro em predominância. Além disso, é modelada por uma concha trabalhada à mão e tem assento e espaldar com costura em zigue-zague.

Não é novidade que o design possui um espaço consolidado e de destaque no mercado catarinense. Esse fator se dá pela aliança entre o desejo de adquirir itens autênticos, afetivos e simbólicos dos consumidores com os grandes talentos oriundos do sul do país. A arquiteta Beatriz Fruet, do escritório BFE Interiores, destaca que os profissionais de Santa Catarina são referência não apenas no Brasil, como no exterior. Os grandes nomes concebem produtos que, segundo ela, são as verdadeiras estrelas dos projetos de interiores. Auxiliando na criação do estilo de decoração, agregando qualidade e durabilidade e exibindo um grande apelo estético, as peças assinadas transformam as moradas que os escolhem e impactam na sua forma com linhas, cores e texturas em perfeita simbiose.

Traduzindo o verdadeiro significado de conforto, a poltrona Flow é resultado de uma esperta combinação de linhas, cordas ou fibras e cores. Possuindo um espaldar alto, o item resume o aconchego de ler um bom livro ao entardecer, adicionado a uma inspiradora área externa. A peça exibe o melhor do design contemporâneo, com ares de contemplação. Além disso, foi desenhada com um pufe que compõe a mesma estética suave com um layout único.

Madeira, metal, couro, alumínio, fibra… não há material que Rejane não converta em uma peça atemporal e, sem dúvidas, funcional. No seu processo de criação, a procura pelo equilíbrio entre soluções práticas e vínculos emocionais contorna os itens que assina. Hoje, a busca por móveis que despertam sentidos está adentrando o nosso cotidiano e mudando a forma que observamos o nosso lar. Para a designer, o distanciamento social consecuta em carência de histórias, e os móveis de design assinado podem ser uma solução a suprir essa falta.

Suas histórias também são inspirações para os móveis que assina. As poltronas Rajá, com espaldar baixo e alto, possuem conexão com sua vida pessoal. Com ares melancólicos, o espaldar curvado é reflete a sensação de quem está velejando sozinho. Já na poltrona Moliçosa, Rejane resgata a brasilidade de duas peças marcantes na história do país em uma releitura contemporânea.

Arquitetura e design se cruzam em diversos aspectos. Não à toa, criações icônicas foram concebidas a partir das mentes criativas de arquitetos, como o estadunidense Frank Lloyd Wright e o suíço naturalizado francês Le Corbusier. O mineiro Marcelo Ligieri seguiu o mesmo caminho: formado em arquitetura e urbanismo, atuou como professor e, em 1999, passou a se aventurar no design com o desenvolvimento de um projeto em uma fábrica de móveis. À frente da Doimo Brasil como designer e diretor de arte, Ligieri se dedica atualmente à criação para o mercado de alta decoração em todo o Brasil e com exportação para 20 países.
Tão singular quanto os traços de cada designer é o seu processo criativo. No cotidiano de trabalho do designer, a ordem é clara, com pesquisa de mercado nacional e internacional, análise do desempenho de produtos em linha, briefing, desenho, protótipo, pré-série, lançamento em feira, fotografia e inserção e divulgação. A disciplina vem da prática industrial e do estudo de mercado — para Ligieri, fatores importantes, já que o trabalho de um designer é mais técnico do que aparenta.

As peças assinadas pelo designer premiado costumam ter estrutura em metal. Dessa forma, o mix de material coadjuvante define esteticamente a coleção. “Devido à maior resistência mecânica do metal, as linhas permitem um perfil mais esbelto e minimalista. A escolha do material empregado em conjunto com o metal define o resultado plástico de cada peça”, explica. Optar por essas matérias-primas parte também de uma premissa de sustentabilidade: “As estruturas em metal garantem essa questão, diferentemente da madeira natural, que é um recurso finito e sempre evitada na coleção”.

Mariane Bassegio representa uma geração que enxerga a arquitetura e o design como forças múltiplas e complementares, especialmente em Santa Catarina, estado que se destaca, de acordo com a arquiteta, pela “indústria moveleira forte e cada vez mais promissora”. De Sérgio Mattos, que “traz uma identidade brasileira de forma leve, colorida, divertida e artesanal com uma sofisticação ímpar”, a Jader Almeida, “com peças minimalistas que exalam o perfeccionismo do designer”, ela explora a personalidade, a linguagem e a exclusividade de cada criador em seus projetos, nos quais confere às peças assinadas o protagonismo. A poltrona Kei, de Marcelo Ligieri, é uma de suas criações favoritas — peça com inspiração na arquitetura japonesa e premiada no iF DESIGN AWARD 2016.

A criatividade costuma ser um conceito abstrato. Há quem a trate como dom, como se apenas pessoas que nascem criativas fossem capazes de inventar, desenhar ou escrever. Por vezes, é tratada como algo sublime, que se restringe a gênios e personalidades inalcançáveis.
Para o designer Bruno Faucz, nada disso faz sentido. “Criatividade não é dom. Ela é desenvolvida com percepção, olhar e repertório. Precisamos criar o terreno para que a inspiração chegue, nos preparar para ela”, sugere o catarinense que é um dos principais nomes do mercado, com convite para participar das principais feiras mundiais do setor, de Paris a Milão.

Ao desmistificar a criação, Faucz aponta para a característica que considera fundamental na carreira de designer: a habilidade técnica. Desde o anonimato, via a engenharia de produção e a vivência do chão de fábrica como partes elementares na formação de um bom profissional. Trazer a palavra racionalidade para o processo criativo pode parecer inusitado, mas, para Faucz, ela é essencial para a concepção de ideias. “Um criativo deve ser necessariamente uma pessoa observadora e curiosa. Precisa olhar ao redor e tentar reinterpretar as formas. Treinar e mente”.

— Bruno Faucz
Oposto ao “canibalismo do mercado” — expressão que usa para descrever a produção acelerada que vai de encontro à ideia de produção e consumo sustentáveis —, o designer avalia o ciclo de vida de suas criações e critica o greenwashing: “O produto precisa ter vida longa e o processo de desenvolvimento precisa ser respeitado. É um bom sinal quando empresas se posicionam quanto isso. Sustentabilidade é mais do que um papo de marketing”.
